Que conta Deus e o Diabo na Terra do Sol: Trabalho Final

O argumento de Deus e o Diabo na Terra do Sol é uma síntese de fatos e personagens históricos concretos (o cangaço e o mandonismo local dos coronéis no Nordeste, o beatismo ou misticismo de base milenarista, a literatura de Cordel, Lampião e Corisco, Euclides da Cunha e Guimarães Rosa, Antônio Conselheiro e Antônio Pernambucano (jagunço ou assassino de encomenda de Vitória da Conquista). O vaqueiro Manuel se revolta contra a exploração de que é vítima por parte do coronel Morais e mata-o durante uma briga. Foge com a esposa Rosa da perseguição dos jagunços e acaba se integrando aos seguidores do beato Sebastião, no lugar sagrado de Monte Santo, que promete a prosperidade e o fim dos sofrimentos através do retorno a um catolicismo místico e ritual. Ao presenciar o sacrifício de uma criança, Rosa mata o beato. Ao mesmo tempo, o matador de aluguel Antônio das Mortes, a serviço dos coronéis latifundiários e da Igreja Católica, extermina os seguidores do beato. Em nova fuga, Manoel e Rosa se juntam a Corisco, o diabo loiro, companheiro de Lampião que sobreviveu ao massacre do bando. Antônio das Mortes persegue de forma implacável e termina por matar e degolar Corisco, seguindo-se nova fuga de Manoel e Rosa, desta vez em direção ao mar.

No início, conta a estória, tão freqüente na literatura verista do século XIX, do camponês que, num momento de desespero, mata o patrão escravista. Mas, desde o momento em que Manuel se embrenha na caatinga e se junta ao bando dos fanáticos seguidores do Santo Sebastião -- um profeta negro que afirma que um dia o mar vai virar sertão e o sertão vai virar mar e que o sol choverá ouro e que, portanto, para provocar esse milagre, é preciso matar todos os que fazem o mal, isto é, principalmente os padres e as prostitutas --, desse momento em diante, o filme conta algo de muito moderno: as alucinações, as visões, as práticas e os modos de conduta aberrantes que a fome, a miséria e a ignorância podem inspirar num povo desesperado. 

Em São Sebastião e seus seguidores, fome, ignorância e miséria fazem arder uma loucura que os impele até aos sacrifícios humanos; no cangaceiro Corisco, a cujo bando Manuel se junta depois que o Santo Sebastião e seu grupo são destruídos, fome, ignorância e miséria fomentam uma ferocidade insaciável, sistemática, demoníaca. 

Assim, o Santo Sebastião e Corisco representam Deus e o diabo, ambos deformados e transtornados pela solidão do sertão. De maneira característica, a solução do problema social representado por figuras como o Santo Sebastião e Corisco é confiada à carabina infalível de Antônio das Mortes, matador profissional, figura sinistra, melancólica e lógica de assassino visionário, o qual imagina que, uma vez eliminados o diabo (Corisco) e Deus (o Santo Sebastião), haverá então a guerra de libertação, ou melhor, a revolução, que redimirá o sertão. É assim que Antônio das Mortes fulmina o profeta e o bandido. Manuel, símbolo do povo brasileiro, escapa, testemunha viva da verdade das teses do filme." 

Alberto Moravia, trecho de artigo no semanário L’Espresso, 16/08/64, Roma.

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