Definição de Cineasta
"Para podermos falar de uma teoria dos cineastas devemos começar por procurar entender a que nos referimos com esta expressão e sugerir uma definição de cineasta. A relação dos cineastas com a teoria é necessariamente diversa na forma, no conteúdo, na ambição e na premência. Existem aqueles que deliberadamente tentaram produzir o que poderíamos designar como uma teoria acabada da sua atividade, dando-lhe uma forma suficientemente consistente nos seus critérios e nos seus objetivos. Existem aqueles que produziram conteúdo avulso acerca da sua própria obra, mas igualmente do fenômeno fílmico em geral, e que apesar da sua pertinência carecem de consistência e objetividade. Existem os que procuraram entender o cinema na sua especificidade e sobre isso refletiram minuciosa e aturadamente. E existem aqueles que involuntariamente foram contribuindo para uma clarificação da sua arte a partir de um impulso irreprimível para a reflexão (mesmo que fragmentária e pontual).
O bom cinema é, então, seguramente, um cinema de boas ideias – sejam estas de ordem técnica, estética, ética, política. O discurso dos autores sobre a arte cinematográfica (sua e alheia) é, então, um dos momentos mais importantes para se perceber que ideias são transportadas pelo cinema, mas também que ideias de cinema se materializam nos filmes.
Se, por natureza, o espectador (comum, teórico, crítico, tanto faz) se dedica a interpretar um filme, sob que perspectiva seja ao autor está reservado o mesmo prazer e, frequentemente, a mesma necessidade. Por outro lado, há filmes e modos de entender o cinema que dificilmente podem dispensar o contexto autoral sob risco de se dilapidar o seu potencial artístico ou ignorar o horizonte da sua interpretação.
O que é o cinema? Esta aproximação à ontologia do cinema é tão mais inevitável quanto, em muitos cineastas, mais do que o recurso ao cinema como uma forma de confronto e problematização com o mundo e as suas representações, se manifesta, de forma não apenas paralela, mas eventualmente prioritária, uma problematização do próprio cinema enquanto meio de expressão. O cinema olha-se frequentemente a si próprio e, nesse gesto, é igualmente o cineasta que se olha a si mesmo.
A dimensão técnica da atividade cinematográfica exige um intenso e aturado conhecimento e reconhecimento dos procedimentos necessários à competência profissional, num primeiro momento, e à mestria artística, num momento posterior. O cineasta não prescindirá, então, de uma experiência laboratorial necessária ao domínio de dispositivos e processos. E aí a intensidade da preparação prática revela-se inescapável.
O cineasta detém aqui uma posição privilegiada, interpretando a obra, o seu processo produtivo, as suas intenções primordiais e os seus diversos efeitos a partir do interior do fenômeno criativo. Daí que tão relevantes se configurem as suas intuições mais inexplicáveis, os seus apontamentos e comentários mais esporádicos, as suas elucubrações mais sofisticadas. O seu discurso ganha especial valor porque surge da (e constitui a) própria matriz criativa.
Tomando a designação de cineasta, podemos defini-lo como aquele que domina a arte do movimento – no caso, enquanto mestre do movimento como recurso fundamental da expressão fílmica. O cineasta seria aquele que, desde os pioneiros aos amadores, dos clássicos aos iconoclastas, dos técnicos aos artífices, assumiria e retomaria a cada passo os ensinamentos de uma atividade artística que despertou no sujeito desafios inauditos e reescreveu as suas modalidades afetivas. Uma história feita de heranças e rupturas, de revisões e inaugurações. É o domínio desse vasto saber que assegura ao cineasta o seu estatuto. Neste sentido, o cineasta assume claramente a figura do criador, aquele que exibe uma destreza técnica e professa uma doutrina poiética, as quais tanto podem derivar da autenticidade romântica como da citação pós-modernista, da ironia irreverente como da rendição canônica, formadas na disciplina acadêmica ou no do it yourself prosaico. Algo de demiúrgico está, portanto, aqui em questão, seja uma pretensão divina ou uma humanidade humilde.
O autor enquanto cineasta seja qual for o seu trabalho, o seu estatuto ou o seu papel (realizador, produtor, técnico, etc.), detém, portanto, uma posição premente e privilegiada para a análise do cinema em geral e do filme em particular."
Luís Nogueira, pags. 3 a 9
Luís Nogueira, pags. 3 a 9
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