Os Cineastas e a sua Arte - Parte V

Cinema como Arte

"Se o estilo é o índice do talento de um cineasta e, simultaneamente, a sua melhor produção teórica, é na medida em que entendemos o cinema como arte que as propostas de reflexão de cada realizador melhor podem ser compreendidas e avaliadas. Tomemos então as palavras daqueles que assumiram o pensamento sobre a sua arte para compreender a sua relação com a mesma.
Para uns, o cinema – ou, pelo menos, alguns filmes – é arte, para outros apenas entretenimento.
Para Kuleshov era indispensável, no início do século XX, “elucidar esta questão essencial: o cinematógrafo é uma arte?” (Kuleshov, 36). Estava longe de ser o único cineasta ou pensador a quem esta preocupação interpelava. Germaine Dulac abria o seu texto sobre a ‘cinegrafia integral’ com uma pergunta igualmente desmedida: “o cinema é uma arte?” (in Ramio e Thevenet, 89). Para Kuleshov, nas primeiras décadas do século XX, o cinematógrafo era “uma arte cuja legitimidade carece ainda de ser demonstrada” (Kuleshov, 37). No sistema das artes estabelecido, havia, pois, um estatuto ainda a conquistar de forma inatacável. Para tal seria necessário, segundo Dulac, que através da “sua força” o cinematógrafo vencesse “as incompreensões, os preconceitos, as rotinas, para se manifestar na beleza de uma nova forma” (in Ramioe Thevenet, 89). Constatamos então que o cinema e os seus praticantes o desejavam resgatar dessa condição duvidosa – por muitas décadas ultrapassadas – de “meia arte”, como referiu Eisenstein. Sobre esta depreciação, este autor advertiu ainda, entre a ironia e o cinismo, que “ficariam surpresos ao saber quantos ainda se referem ao cinema deste modo” (Eisenstein, 113).
Certamente que a questão da arte cinematográfica passa por aí, por essa diferença entre o que se vê e representa e a maneira como se representa o que se vê. O que esta definição singela da arte cinematográfica não recobre são os inúmeros modos como a realidade pode ser transformada em discurso fílmico, desde a sua observação mais simples até a sua chegada ao ecrã. Essa diferença poderá ou deverá ser procurada na especificidade do cinema, nessa especificidade que atravessa os modos muito diversos como o cinema se relaciona com a realidade.
Há certamente algo de específico no cinema se comparado com as outras artes. A sua busca e a sua depuração alimentaram inúmeros pensamentos e debates ao longo da história do cinema. Há, portanto, algo que, de um ponto de vista técnico como artístico, sucede no cinema que não sucede nas outras artes. Afirma Kuleshov: “a especificidade de cada disciplina artística reside no meio que ela utiliza para produzir uma impressão artística, quer dizer, o meio susceptível de produzir uma impressão, um efeito sobre o público e suscitar esta ou aquela emoção, independentemente do assunto escolhido” (Kuleshov, 36). Produzir uma impressão, criar um efeito, suscitar uma emoção. (Não será isso que, de formas múltiplas, cada arte e cada obra e cada artista procuram?) O cinematógrafo seria então, no dizer do mesmo autor, “uma arte e um meio de produzir uma impressão artística” (Kuleshov, 37). Sabemos o quanto cineastas tão diferentes como Eisenstein, Hitchcock, Tarkovski ou Spielberg, e de modos tão variados – intelectual, afetivo, metafísico, empático – levaram a sério esta ideia e trabalharam esta virtualidade.
Para Tarkovski, a arte não pode nunca prescindir do absoluto, do belo, da perfeição, se possível. E para lá chegar, não pode abdicar da fé: “um artista que não tem fé é como um pintor que nasceu cego” (Tarkovski, 43). Uma fé certamente da ordem do divino, mas que se espelha numa autenticidade subjetiva. Diz o cineasta russo que “uma coisa é certa: uma obra-prima apenas surge quando o artista é totalmente sincero no tratamento do seu material” (Tarkovski, 46). É esta sinceridade artística o que o cineasta procura, ou deve procurar, partilhar. Segundo Tarkovski, seja espiritual ou estética, “a grande função da arte é a comunicação” (Tarkovski, 41). Mas esta comunicação está longe de ter um estatuto prosaico, banal, imediato, meramente funcional, e haverá de estar uma e outra vez votada ao fracasso: “é óbvio que a arte não pode ensinar nada a ninguém, pois em quatro mil anos a humanidade não aprendeu absolutamente nada” (Tarkovski, 50). Podemos ver aqui certo pessimismo acerca das propriedades e possibilidades morais ou didáticas da arte. Mas que espelha outra consideração de Tarkovski, que vê na arte uma abertura e não uma doutrina: “a grandeza e ambiguidade da arte reside no fato de esta não provar nada, não explicar e não responder a questões” (Tarkovski, 54). Uma abertura que é, antes de tudo, da ordem dos afetos: “a arte afeta as emoções, não a razão” (Tarkovski, 165)."

Luís Nogueira, pags. 19 a 24

Para ver Bibliografia clique em http://www.livroslabcom.ubi.pt/pdfs/20101105-nogueira_manuais_iv_cineastas.pdf página 162, 163.

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