“Mutações tecnológicas são inevitavelmente acompanhadas de mutações formais, estilísticas e estéticas. No fundo, se assim podemos dizer, novas linguagens. Poucas questões terão conduzido a tantas discordâncias entre os diversos intervenientes no estudo do fenômeno cinematográfico como a polêmica sobre a hipótese de uma linguagem fílmica. A grande questão resume-se, na sua forma mais simples, numa pergunta: o cinema é ou não uma linguagem? Certamente que existe algo de insolúvel nesta questão e essa insolubilidade está contida imediatamente na premissa que a sustenta: como saber se o cinema é uma linguagem, quando não existem uma definição e descrição absolutas, epistemologicamente invulneráveis, do que seja uma linguagem? Se entendermos uma linguagem como um conjunto de elementos que, sujeitos a determinadas regras, normas ou princípios, permitem criar enunciados significativos, então o cinema conta-se entre as linguagens. Estas regras devem submeter-se a uma infalibilidade lógica, quase matemática, ou podem sustentar-se em indícios e virtualidades.
Por mais difíceis ou insanáveis que sejam estas questões, uma e outra vez os próprios cineastas se referiram e referem ao cinema como uma linguagem e procuraram para ele uma sintaxe ou uma gramática. Muitas vezes se utilizaram, no campo da reflexão teórica cinematográfica, as ideias de gramática e de sintaxe de um modo alusivo e aproximativo. Se uma gramática nos diz o que se pode e não se pode fazer para construir um discurso; se a sintaxe ordena os procedimentos enunciativos segundo uma lógica de permissões; se ambas tendem a funcionar em termos de prescrições e exclusões, então o cinema – como as demais artes – segue um curso diferente da linguagem verbal: nenhuma gramática enumera as regras na sua totalidade exaustiva ou as caracteriza na sua abrangência máxima.
De qualquer modo, uma e outra vez os diversos cineastas se assumiram, por conveniência ou não, como praticantes e utilizadores de uma linguagem. A linguagem cinematográfica, por mais vaga, volúvel e evanescente que esta expressão se revele, tornou-se uma espécie de porto seguro nos diversos discursos que envolvem o cinema, entre os quais os dos realizadores. De forma simples, Astruc falava no seu texto seminal de “uma linguagem, isto é, uma forma na qual e mediante a qual um artista pode expressar o seu pensamento, por muito abstrato que seja, ou traduzir as suas obsessões exatamente como ocorre atualmente com o ensaio ou o romance. Por isso, chamo a esta nova era do cinema a era da camera-stylo” (in Ramio e Thevenet, 221).
Uma e outra vez ouvem-se os cineastas a falar de uma linguagem do cinema (para além de, naturalmente, praticarem a linguagem do cinema). Greenaway diz que continua a “querer usar o cinema como uma linguagem” (Gras e Gras, 48), não denegando que as demais artes possuem as suas linguagens específicas. Astruc, por seu lado, propõe um questionamento da mise-en-scène, a qual “não é já um meio de ilustrar ou apresentar uma cena, mas sim uma autêntica escrita. O autor escreve com a câmara da mesma maneira que o escritor escreve com a caneta” (in Ramio e Thevenet, 224). Aqui, a linguagem de referência é a escrita e a similitude com a linguagem verbal não é disfarçada. Num sentido semelhante podemos entender as seguintes afirmações de Bresson, segundo as quais “o cinematógrafo é uma escrita com imagens em movimento e sons” (Bresson, 17) e que se trataria de uma “escrita nova” (Bresson, 61). Esta escrita sustentar-se-ia, ainda segundo o mesmo autor, numa “linguagem de imagens na qual é preciso perder completamente a noção de imagem. Que as imagens excluam a ideia de imagem” (Bresson, 63). Enigmático e problemático preceito: perder o conceito nuclear despi-lo, para revelar a pureza imanente, escondida, latente. Quem sabe, seja nisso mesmo que consiste o poder anímico de que fala Epstein: “o cinema é uma língua e, como todas as línguas, é animista, o que significa que empresta uma aparência de vida a todos os objetos que ele desenha” (Epstein, 140). Poderíamos questionar-nos acerca da noção de vida aqui presente; porém, parece-nos que o mais importante não estará naquilo que aqui diz respeito ao cinema, mas antes no que o reenvia para todas as línguas ou linguagens: a capacidade de criar uma aparência de vida nos objetos."
Luís Nogueira, pags 47 a 51
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